Encontrei um paper sobre Private Equity e resolvi partilhar alguns dos tópicos abordados. Para quem tem alguma curiosidade sobre o mundo dos fundos de investimento, poderá ser uma leitura interessante.
Há uma nova febre nos Private Equity (PE) funds mas trazem consigo um novelo de questões que os investidores (e reguladores!) estão a tentar desemaranhar. O paper foi escrito por Kobi Kastiel (Tel Aviv University, Harvard Law School and ECGI) e Yaron Nili (University of Wisconsin-Madison and ECGI) , January 2024 e mergulha a fundo neste tema. Vou tentar dar-vos a versão "para leigos" (mas informada!).
Imaginem isto: uma empresa de Private Equity (PE) tem um ativo fantástico, mas o prazo do seu fundo tradicional (normalmente 10 anos) está a terminar. Em vez de o vender a terceiros, o que faria sentido no modelo atual, a empresa decide vendê-lo a… si mesma! Ou melhor, a um novo fundo que ela própria criou, o "continuation fund".
Isto é a grande novidade. A indústria de PE aplaude esta "opcionalidade", permitindo aos investidores fazerem o cash-out ou "rolarem" o investimento para o novo fundo. A popularidade destes fundos explodiu, representando agora uma fatia significativa da atividade de investimento nos EUA. No entanto, há um detalhe curioso: a maioria dos investidores existentes nos fundos originais recusa-se a "rolar" os seus investimentos para o novo fundo, mesmo sendo gerido pela mesma firma com quem têm uma relação de anos.
Porquê esta resistência? O paper explora os labirintos de preocupações, os conflitos de interesse (entre os gestores e os investidores e entre os próprios investidores) e até o porquê de, no fim das contas, a "casa" (o gestor de PE) quase sempre ganhar.
Notem que Continuation funds é algo diferente de Evergreen Funds, no final do artigo eu listo as diferenças, por agora vamos nos focar no artigo.
Para percebermos os continuation funds, temos de entender como funciona o Private Equity tradicional. Basicamente, os fundos de PE juntam dinheiro de investidores (os "Limited Partners" ou LPs) para comprar e vender empresas ou imobiliário, muitas vezes com muita dívida. Quem gere o fundo e toma as decisões é a firma de PE, chamada "General Partner" ou GP.
O modelo de PE é famoso pelo seu sucesso, assente em duas características-chave: a compensação dos GPs, maioritariamente baseada em desempenho (o famoso "Two and Twenty" – 2% de gestão e 20% dos lucros) e a duração limitada dos fundos (geralmente 10 anos), que força os GPs a "prestar contas" e a procurar novos capitais periodicamente.
Mas, mesmo sendo os LPs "investidores sofisticados", o paper revela um "quebra-cabeças": por que é que estes LPs, supostamente sofisticados, não conseguem negociar proteções mais fortes nos seus acordos? Segundo o paper a resposta passa por problemas de coordenação, falta de informação e, pasmem-se, o medo de serem excluídos de futuros fundos de GPs de topo se forem "demasiado exigentes".
O modelo de compensação "Two and Twenty" e o prazo limitado são os pilares do PE, mas a percepção de que os investidores "sofisticados" sempre se protegem pode ser uma ilusão.
Aqui é onde a ação começa de verdade! Os continuation funds surgem como uma solução "criativa" para os GPs manterem ativos para além dos 10 anos do fundo original. Em vez de venderem ativos a terceiros, os GPs vendem-nos ao seu próprio fundo recém-criado.
Vantagens (para quem?): Para os GPs: mais tempo para os ativos renderem, mais flexibilidade e elimina a necessidade de vender a outra firma de PE. Para os LPs do fundo original, a promessa é de "opcionalidade": fazem cash-out ou continuam a investir no novo fundo.
Estes fundos não são uma moda passageira; o seu volume de transações disparou mais de 750% em cinco anos, atingindo cerca de 68 mil milhões de dólares em 2021. Antes eram usados para "fundos zombie" (ativos problemáticos), mas agora são a ferramenta preferida para os ativos de alto desempenho que os GPs querem manter.
Mas esta é uma opção que levanta uma grande questão: Há ou não conflitos de interesse? O paper desvenda a "teia de conflitos":
O dilema: os GPs têm incentivos financeiros muito fortes para criar continuation funds, o que gera conflitos de interesse massivos e pode levar à subvalorização de ativos em detrimento dos LPs que querem sair. Isto questiona a integridade do processo de avaliação no setor.
Os Autores realizaram entrevistas com participantes do mercado (LPs e GPs) para ver como a teoria se encaixa na prática. E a realidade é mais complexa do que parece.
A ideia de que os LPs são sofisticados e conseguem proteger os seus interesses é posta em causa. Muitos LPs enfrentam desafios significativos que os podem levar a vender os seus investimentos em condições desfavoráveis:
Quanto à reputação, que deveria ser um baluarte contra comportamentos oportunistas, funciona melhor para os LPs maiores e mais sofisticados, que têm mais influência e relações contínuas com os GPs. Os LPs mais pequenos, com menos poder de negociação, são mais propensos a sair, pois o GP se importa menos em manter a relação. E, no geral, os LPs evitam levar os GPs a tribunal por medo de prejudicar a sua reputação no mercado.
As práticas de mercado destinadas a resolver estes conflitos também são questionadas:
E, por último, o paper critica a reforma da SEC, que obriga à obtenção de "fairness opinions" (pareceres de justiça) de avaliadores independentes. Tanto os GPs (pelos custos) como os LPs (pela falta de objetividade, já que o avaliador é contratado pelo GP e quer manter o cliente) questionam a sua utilidade.
Highlight que impacta o setor: Os LPs não são tão "espertos" ou protegidos quanto se pensa nas transações de continuation funds, devido a lacunas de informação, prazos impossíveis, e conflitos de interesse generalizados. Os mecanismos de governação existentes, como os LPACs e os pareceres de justiça, são vistos como insuficientes para garantir a equidade.
Chegamos ao cerne da discussão: continuation funds – são uma forma eficiente de operar no mercado ou uma falha de mercado que prejudica os investidores?
Visão de "Mercado Eficiente": Os defensores argumentam que são um mecanismo de discriminação de preços eficaz (oferecendo melhores negócios a LPs grandes e sofisticados) e um reflexo de trocas entre preço e proteções contratuais. Além disso, as forças da reputação deveriam travar o oportunismo dos GPs.
Visão de "Falha de Mercado": O paper contrapõe que estes fundos impõem custos de eficiência significativos (má alocação de capital), são uma discriminação de preços opaca e dispendiosa, e que as forças da reputação são insuficientes para mitigar os problemas. A assimetria de informação, a falta de dados fiáveis sobre o desempenho destes fundos e a dificuldade dos LPs em punir comportamentos oportunistas limitam a eficácia da reputação. Além disso, os LPs têm opções limitadas de saída devido à necessidade de diversificação e a problemas internos de agência.
Caminhos Alternativos: O paper não defende a proibição, mas sim soluções sistémicas:
Implementação: Estas propostas podem ser implementadas através de acordos privados (os LPs negociam nos LPAs) ou por intervenção regulatória da SEC. Dada a limitação do poder de negociação dos LPs, a intervenção regulatória pode ser crucial.
A perceção de que o mercado de PE é eficiente e autorregulador é questionada. São propostas mudanças significativas para aumentar a transparência e dar mais poder aos LPs, incluindo a opção de "status quo", o voto direto e a partilha dos custos. Isto aponta para a necessidade de uma revisão profunda das práticas de governação neste setor.
Os continuation funds são, sem dúvida, uma opção "mainstream" no Private Equity, mas geram uma frustração palpável entre muitos investidores. Este paper é um convite à reflexão sobre os limites do poder dos investidores na mitigação das fricções do mercado de PE.
O paper poderá ser consultado na integra aqui
Para terminar e só para que não hajam dúvidas sobre o que são os Continuation Funds e o que os destingue dos Evergreem Funds:
São fundos de investimento com duração indefinida (sem prazo fixo para terminar). Em vez de terem um ciclo típico de investimento e desinvestimento (7–10 anos), os fundos evergreen estão continuamente abertos a novos investimentos e podem manter ativos por tempo indeterminado.
Principais características
Exemplos de aplicação
São veículos de investimento criados por um gestor de private equity (GP) no fim da vida de um fundo tradicional para manter ativos específicos por mais tempo. Permitem que os investidores do fundo antigo saiam com liquidez, enquanto novos investidores entram para continuar a desenvolver esses ativos.
Exemplos de aplicação